domingo, 11 de setembro de 2011

Há 11 anos

Era uma fria manhã de outubro, de céu muito azul - daquelas que fazem a gente procurar um lugarzinho ao sol para deixar-se ficar por ali, vendo New York passar.  Mas, confesso, não foi por isso que desci os dez andares tão logo entreguei a prova para a professora. Desci atrás de café. E cigarro.

Então, por volta das 11:30 h estava ali, na esquina da 7ª Avenida com a 29, dando trato a ambos os vícios e esperando o Coronel descer para o programa que se tornara tradicional nos últimos meses: almoço rápido na Guy & Gallard e retorno à escola para as aulas de conversação.

Foi quando avistei o caminhão. Diferentemente do que acontecia, com alguma freqüência, desde que eu me tornara habitué daquela esquina, desta vez ele não passou a mil, sirene aberta. Não. Veio lentamente, em silêncio, apenas as luzes piscando. E estacionou bem à minha frente.

Um segundo depois, Stephen Elliot Belson desceu do banco do carona. Parecia ser um homem corpulento, embora o equipamento possa criar este tipo de ilusão. Mas era, sem sombra de dúvida, alto. E ruivo. E dono de uma característica inconfundível que, ao fim e ao cabo, foi o que colou sua impressionante figura na minha memória: um imenso e ruivo bigode no melhor estilo Tom Selleck.

Enquanto se dirigia, em passos calmos, para a porta do prédio, ele me perguntou:

- O que há neste edifício?

- Perdão?

- Que tipo de empresa há neste prédio?

- No 9° e 10º há uma escola. Nos outros não sei dizer... O que está acontecendo?

- Um alarme de incêndio.

Ato imediato, joguei  fora o cigarro e fiz menção de entrar também. Belson parou. Parei com ele enquanto o ouvia perguntar: 

- O que você está fazendo? 

Apontei para a porta :

- Meu marido está lá dentro.

Ele quase sorriu, compreensivo, por baixo do bigodão:

- Não se preocupe. Espere aqui.

No segundo seguinte, sumiu saguão adentro, naquele passo calmo.

Não sei quanto tempo se passou até que ele retornasse. Dez, talvez quinze, minutos? Sei que eu estava calma. Talvez porque não houvesse qualquer som de alarme, cheiro de fumaça ou sinal de agitação vindo do prédio. Ou a presença daquele enorme caminhão vermelho, com o motorista despreocupadamente acomodado ao volante, me deixasse calma. Ou Belson e seu manso caminhar tivessem me tranqüilizado.

Motivos para tensão havia. Por aqueles dias, um terrorista, um tal de Bin Laden, tivera sucesso ao ordenar um ataque suicida contra um navio de guerra americano ancorado no Iêmen. A cidade andava nervosa. Eu mesma, naquela semana, ao voltar pra casa, tivera que descer uma estação antes e caminhar alguns quarteirões a mais porque o esquadrão anti-bombas fechara a Union Square – alguém esquecera uma sacola de compras em um banco da estação.

Ainda assim, quando Belson retornou à calçada, me encontrou calma. Antes de embarcar de volta no caminhão, ele avisou: 

- Tudo ok. Alguém estava fumando na escadaria do quarto andar.

Não lembro se respondi. Ou se agradeci. O que eu lembro é que, pouco depois, já bem instalada à mesa da Guy & Gallard, contando a aventura ao Coronel, me dei conta do que, afinal de contas, faria daquele um episódio inesquecível: pela primeira vez eu falara inglês no automático, sem traduzir primeiro.

Não sei se todo mundo que vai para outro país estudar um idioma lembra com tanta clareza da sensação de estabelecer todo um diálogo sem, antes, traduzir mentalmente. Para mim foi algo marcante. Eu era uma aluna esforçada, ciente de que um intercâmbio cultural aos 35 anos era uma oportunidade única, e fiquei feliz demais ao saber que estava realmente aprendendo.

De fato, não era surpresa que a situação envolvesse algum pânico – o que sempre nos faz superar limites -  e bombeiros. Na infância, eu acordara no meio da noite com o prédio onde morávamos em chamas. Desde então, bombeiros exercem certa fascinação sobre o meu imaginário. São, para mim, o modelo mais perfeito de herói.

Por isso, nunca esqueci Belson e seu bigodão. O detalhe é que não sabia seu nome. Então, as únicas coisas que sabia dele eram a fisionomia inconfundível, o passo calmo, e que pertencia à companhia da West 31st, que ficava bem próxima da Penn Station - a  Engine1/Ladder 24 que, volta e meia, cruzava a 7ª avenida com a sirene esgarçada, atrapalhando as nossas aulas. Foi  somente um ano depois,  já de volta ao Brasil, que descobri o nome e um pouco da história de Stephen Elliot Belson.

Nos atordoantes dias e semanas que se seguiram ao 11 de setembro, quando começaram a surgir os nomes e fotos dos 343 bombeiros mortos, tomei coragem para pesquisar se a Engine1/Ladder 24 perdera alguém.

Sim, quatro perdas. Duas na torre norte, duas na torre sul: Andrew Desperito, Michael T. Weinberg, Daniel J. Brethel e Stephen Elliot Belson – que reconheci tão logo descobri a foto nos inúmeros memoriais que se espalharam pela web.

Hoje sei que “Mr. Ladder 24”, como era chamado pelos colegas, cresceu no Queens e, antes de ser bombeiro, foi salva-vidas em Rockaway Beach.  Falante, era considerado o “embaixador” da sua companhia. Hoje sei que, naquela fatídica manhã de 11 de setembro, aos 51 anos, Belson assumiu o volante da viatura e, junto com um dos chefes do batalhão, Orio J. Palmer, dirigiu-se ao World Trade Center – de onde jamais voltou.

O que não sei é porque levei dez anos para contar esta história. Talvez porque, para fazer sentido, ela precisaria ser longa demais para um só post. Talvez, pelo medo de parecer piegas demais. Medo bobo. “Mr. Ladder 24” e seus outros 342 colegas estão muito acima destas preocupações mundanas.