Posso estar me precipitando, mas... Parece - notem que ainda há dúvidas - que estamos prestes a viver um fenômeno interessante.
Quando nada deu certo...
Ao longo dos últimos cinco anos, estivemos amargando um quadro onde a hegemonia discursiva de uma esquerda jurássica - investida de todas as vantagens que a chegada ao poder lhe conferiu - não encontrou adversários à altura. Ou melhor: aqueles que assim se apresentavam tinham um poder de fogo - ou de alcance, como queiram - bastante limitado.
Do ponto de vista dos agentes políticos, então, é uma desgraceira só. Uma oposição frouxa, incapaz de transformar as vergonhas do primeiro mandato presidencial petista em rejeição eleitoral é o mínimo que se pode dizer. Lá, na linha do máximo que se pode dizer, temos sua postura conivente, sempre amancebada com vantagens pessoais e eleitoreiras, que acabaram por transformar o Congresso Nacional numa grande pizzaria.
A imprensa, por sua vez, a despeito de tudo ter noticiado e denunciado, saiu da última eleição com a incumbência de rediscutir seu papel enquanto formadora de opinião. Simplesmente porque lá, onde a fome e o analfabetismo são cabos eleitorais, sua voz não chega. E a verdade é que ela, a imprensa, está também às voltas com uma guerra própria: por um lado, precisa se defender dos ataques que lhe desferem, volta e meia, aqueles que estão no poder; por outro, precisa, por sua própria natureza, abrigar em suas fronteiras a diversidade. Nisso comete besteiras - e o episódio em que as grifes usadas pelos participantes do movimento "Cansei" se tornaram mais importantes que o próprio movimento em si, é exemplar.
Falando neles, os movimentos apartidários, promovidos por entidades civis nos últimos meses, deve-se admitir que têm sido igualmente decepcionantes. Simplesmente porque não conseguiram encontrar o tom certo, a voz correta, para mobilizar aquela parcela da população que, escandalizada com tudo que vê, não se sente representada por esta oposição que aí está. Faltou-lhes experiência, dizem alguns. Faltou-lhes competência para reconhecer que, se não tinham experiência, deveriam e ir atrás de quem tivesse, digo eu.
Mas este cenário escuro e sufocante viu nascer, nos últimos dias, uma rachadura por onde, parece, está entrando alguma luz e um pouco de ar puro. É coisa que começou pequena e, considerando o que declaram os próprios pais da criança, involuntariamente. Mas parece sinalizar que, enquanto os agentes políticos, a imprensa e as entidades civis estão falhando, a produção cultural pode estar prestes a operar uma reação.
É a cultura de massa, estúpido!
Tem muita gente tentando explicar o sucesso de Tropa de Elite. Pois coloquem todas as explicações no liqüidificador e verão que, no final das contas, o que resta é a rejeição a um discurso hipócrita que é característico da esquerda. Discurso hegemônico, até ontem, que foi rachado pela força, até certo ponto involuntária, de uma produção cultural de massa - ou que a pirataria tratou de transformar em fenômeno de massa, como queiram.
Quem observa revoluções culturais sabe que é exatamente assim que elas começam: uma obra aponta um caminho. Logo surge outra. Em seguida, outra. E, muito antes que o discurso hegemônico possa emitir uma reação, a coisa já tomou proporções incontroláveis. A esquerda jurássica aboletada no poder, e nos cantinhos empoeirados das redações, sabe disso. Por qual motivo vocês acham que Tropa de Elite está recebendo ataques a mais não poder? Observem quem ataca e já se apresenta a resposta.
"A NG enlouqueceu de vez", pensará - não sem alguma razão - o leitor. "Agora, por causa de um filme, vai postular que estamos às portas de uma revolução cultural?".
Não é exatamente assim, meus caros. Já não é mais "só um filme" - e faz algumas semanas que não é. Já não é mais uma só rachadura. São duas.
Estou acompanhando, na medida do possível, a novela Duas Caras. Não só a novela mas, sobretudo, a patrulha que seu autor, Aguinaldo Silva, vem sofrendo. As primeiras reações surgiram quando Aguinaldo ousou declarar que José Dirceu lhe servira de inspiração. Depois, ele foi acusado de apoiar, através de seu personagem "Juvenal Antena", a atuação das milícias nas favelas. Outro dia, foi esfolado por uma colunista de O Globo, porque criou cenas em que a imprensa é apedrejada - como se isto não fosse um retrato fidelíssimo da realidade brasileira. E desconfio que, nas próximas horas, outros ataques virão - um professor universitário chamado "Inácio Guevara" foi apresentado de forma nada edificante no capítulo de ontem.
Portanto, meus caros, não é mais só Tropa de Elite. Como eu disse na primeira linha deste longo artigo, posso estar me precipitando. Mas parece que alguns produtores de cultura de massa acordaram - e estão dipostos a promover uma pequena revolução.
No caso de Padilha e seu polêmico filme, pode ter sido involuntário. No caso de Aguinaldo Silva, certamente não é. Quem duvidar, que dê uma passadinha no blog dele. Desde a estréia de Duas Caras, o autor está mantendo um blog, onde fala de suas idéias e tenta se defender da patrulha. Vale a pena percorrer os posts mais antigos para saber o que Aguinaldo pensa de Che Guevara - ou de como ele foi assediado, na rua, aos gritos de "cachorro, safado!", por uma petista.