domingo, 20 de abril de 2008

Quando o povo se faz temer

Na manhã de 7 de setembro de 2007, às portas da Polícia Judiciária de Portimão, Kate McCann foi vaiada por centenas de pessoas que estavam instaladas ali apenas para vê-la passar. Mais cedo, a polícia deixara vazar para a imprensa que Kate McCann estava envolvida na morte da sua filha desaparecida, Madeleine. O trânsito no local fora interrompido num raio de de 100 metros da sede policial devido ao grande número de jornalista e populares que, desde o dia anterior, se amontoavam no local para assistir ao desenrolar dos acontecimentos.

A cena recente - apenas mais uma das inúmeras que a mídia ofereceu durante o ruidoso, e ainda não solucionado, "Caso Madeleine" - deveria servir para acalmar os ânimos de gente afoita como Clóvis Rossi que, na edição de hoje da Folha de São Paulo, chamou de "Talibãs" os populares que se acotovelaram diante da delegacia em que o pai e a madrasta de Isabella Nardoni estavam depondo. Também deveria servir , o caso Madeleine, para deixar constrangidos àqueles que passaram os últimos dias criticando a nossa mídia; dizendo que ela peca - e nisso difere da mídia do hemisfério norte - em dar tanta atenção ao Caso Isabella.

Porque a verdade é que eu acho ótimo que a nossa mídia trate uma monstruosidade dessas como ela deve ser tratada: como algo extraordinário, incomum e jamais visto antes. Assim como acho ótimo, fantástico e absolutamente saudável que os brasileiros não estejam tão anestesiados como aparentam - e que ainda se revoltem profundamente com crime tão horrendo. Acho, ao contrário do que se tem dito por aí, que as cenas da última sexta-feira são um sinal de vida.

É claro que eu não apoio atos de violência. E penso que a polícia tem a obrigação de garantir a integridade física dos suspeitos - papel que, usualmente, ela vem desempenhando com sucesso. Mas defendo o direito de qualquer cidadão a se expressar livremente. E acho muito bom que assassinos potenciais, juízes, policiais e políticos assistam, volta e meia, em suas televisões, o povo revoltado, ao vivo, xingando e clamando por justiça.

Incitados pela mídia sensacionalista? Sim... E daí? Do público que lota o Maracanã ao eleitor que vai às urnas não há, hoje, em qualquer lugar do globo, ajuntamento de pessoas que não seja 'incitado' por algum tipo específico de mídia. Portanto deixemos de hipocrisia e partamos para o fato inegável: no teatro democrático, cada um tem um papel determinado a desempenhar. E, às vezes, deve-se desempenhá-lo com maior dramaticidade - a polícia de choque, que bate seus cacetetes contra os escudos em advertência, entende muito bem este jogo.

Se manifestações como as que vimos na última sexta-feira ocorrerem com mais freqüência, talvez diminua o número de juizes dispostos a manter em liberdade assassinos como Jorge Farah e Pimenta Neves. Ou não é verdade que, ao fim e ao cabo, a natureza da Lei se mostra muito mais interpretativa do que técnica? Ou não é verdade que passeatas e camisetinhas não têm conseguido impedir verdadeiras injustiças cometidas à sombra da interpretação da Lei?

E se assim é, você terá que admitir que algum tipo de pressão popular explícita - e carregada com uma boa dose de revolta - se faz necessária. Sem isso, sem eventuais demonstrações de indignação popular - com um claro, mas nunca realizado, potencial de violência - as autoridades vão ficando tranqüilas demais, lerdas demais, cínicas demais e corruptas demais.

Se o leitor duvidar, sinta-se livre para vasculhar nossas raízes, buscar nossa identidade e discutir nossa formação sociocultural... Sinta-se a vontade para cercar-se de todas as teorias e métodos a fim de tentar entender o que se passa conosco. No frigir dos ovos, descobrirá que a impunidade tomou conta do Brasil porque nossas autoridades deixaram, há muito, de temer o povo.

15 comentários:

Thereza Pires disse...

Excelente texto. Concordo plenamente. Nosso clamor pautará atitudes decentes de muitas autoridades.

marie tourvel disse...

Nossa, Nariz, que texto! Você disse tudo. Não tenho comentários simplesmente porque está tudo escrito no post. Parabéns, querida. Mais uma vez você se supera. Sem surpresas com sua lucidez, só constatação da mesma. Vou já indicar a leitura lá no Letras. Beijos

(N.G.: obrigada, Marie. Você é muito gentil. Bjs)

Roberto disse...

Ops, desculpe-me a distração. Agora vi que o "comentário" do Noblat é um post seu!

By the way, parabéns pelo texto e por favor, desconsiderem meu post anterior.

Abs

(N.G.: tudo bem, Roberto.E obrigada.)

Ligia disse...

Oi Nariz!
Pois não é que pensei igual? Será que todo mundo não está por conta do Não sei de nada? Isso não indigna mais? E ainda foram dar entrevista pro Fantástico. Mas penso também o que precisa pra mexer com o povão, tão emocional.
Falaste em La nave vá, juro que achei que quem comentava no Noblat usando esta frase no fim dos post fosse o tal Parada da Band. Não creio que fosse tu né? Era petezão ou no máximo em cima do muro.
Beijocas
Ao meu ver essa menina é a nossa Madeleine , só com a diferença de mãe com stress de gêmeos, não ciumeira de madrasta.

(N.G.: Lígia, querida, estou confusaa: onde eu falei em 'La Nave vá? Quem é o 'Parada da Band'? Lembro, sim, de um comentarista do Noblat que usava isto no final dos comentários. Mas eu, por lá, sempre comentei como Nariz Gelado mesmo.)

Jonas Binelli disse...

Não acredito que esse tipo de pressão popular, principalmente quando utilizada para suprimir um direito (no caso a presunção de inocência, pelo menos) seja assim tão salutar. Além do que nesse caso ela parecer ser, principalmente, insuflada pelas declarações de responsáveis pelas investigações. Por exemplo, uma dessas manifestações, se fossem insufladas pelo PT, tornariam mais legitimo que o congresso aprovasse um terceiro mandato?

(N.G.: quem está suprimindo o direito de presunção da inocência? Todos os direitos do casal estão sendo preservado, Inclusive o direito a uma entrevista descarada no Fantástico Quanto ao terceiro mandato, já há tentativa de insuflar um movimento neste sentido - liderado por um compadre de Lula, aliás.. A razão pelo qual o povo não está correspondendo a este chamado deveria ser motivo de reflexão para você.)

marcelo disse...

realmente, a repercussão alcançada por esse caso pressionou a polícia e a justiça para que haja celeridade no processo todo.

de certa forma, a cobertura da mídia ajuda a demonstrar ao "povão" que se houver disposição e recursos, 99% dos crimes contra a vida podem ser elucidados. inclusive após a exibição do seriado "CSI" nos eua houve problemas para a polícia e a justiça pois o povo que é convocado para julgamentos baseado no que assistiu nos episódios começou a exigir mais e melhores provas para os julgamentos.

jc disse...

Discordo em parte...acho q o povao na frente da delegacia era composto em sua maioria por desocupados, curiosos e gente com cabeca de bagre. Revoltosos e enfurecidos pelo ato, minoria. P da vida mesmo, brasileiro soh fica quando ferram seu bolso. Por isso 60% destes animais ainda adoram o mulla.

Oliver disse...

NG
Sua lucidez eh um brinde aos seus leitores. Nas trevas em que vivemos, uma luz. Que a sociedade aprenda a cobrar de seus servidores aquilo que sao pagos para fazer. Quem sabe assim o poder publico, que nao vem se moldando pela etica, pelo menos se mova pela vergonha.

João Bosco disse...

O que me preocupa neste episodio, é a falta de solidariedade com a perda de Isabella, não vejo manifestações de carinho com a vitima.
Não desejo a impunidade, mas acho que há muito falatório de autoridades antes da hora. São temerários certos pronunciamentos antes que os laudos técnicos fiquem prontos. Tudo bem falar de tendências da investigação, mas querer utilizar o clamor popular, não para chamar a atenção de problemas com a violência, por exemplo, mas para dirigir uma investigação é perigo certo.
Veja, concordo em parte com suas colocações. O fato de existir um clamor popular é salutar, mas preocupa o fato de haver a possibilidade de manobrar este clamor.
Como controlar o "potencial de violência"?
Quem é o culpado pelo não cumprimento efetivo de penas contra crimes? Os juizes? A legislação vigente? O voto "anestesiado" do povo?
Eu considero esta última pergunta, a resposta correta.
E, infelizmente, quando este caso for encerrado, muitos terão esquecido e, as penas ficarão longe do necessário, concordo plenamente neste item.
Sobre a mídia, acho que está fazendo seu papel sim, mas eu tenho dificuldades para entender pessoas que deixam seus afazeres, para gritar "morra", sem demonstrar dor pela perda de uma vida, mesmo que seu desejo é vingar aquela vida.
Em tempo: toda atenção com os laudos técnicos neste caso. Se o casal for culpado, eles serão o fator determinante da sentença.

(N.G.: os laudos já existem. Foram eles que levaram as pessoas à porta da delegacia. Aliás foram eles que determinaram o indiciamento de ambos.)

MARCO ANTONIO disse...

Bom texto. Parabéns.

Não fosse a pressão da mídia e, consequentemente, da opinião pública, do povão ir até a porta das casa dos pais do casal, ficar dando plantão na frente da delegacia, quem sabe o caso estivesse sendo investigado como vários Brasil afora.

Os que fazem crítca à reação popular esperavam o quê, um comportamento semelhante ao de aristocratas ingleses no chá das cinco?

Ora, estamos falanndo de um crime brutal, pancadaria seguida de lançamento do sexto andar. E, em sendo contra uma criança de cinco anos e indefesa, eleve-se isso ao quadrado. Se, como indica a polícia, ficar provado ter sido praticado pelo casal, o resultado torna-se exponencial.

Se foi assim, se tudo precisa ser devidamente esclarecido, se é preciso fazer justiça contra um ato que fere profundamente os princpipios cristãos sobre os quais se apoia a nossa sociedade, então ótimo que tenha havido sensacionalismo da mídia, cada canal ao seu jeito e ao seu modo, gritaria, vaias, lágrimas, cartazes, tudo sob os olhos da polícia. As pessoas fizeram protestos na frente de pelotões de homens armados, não foi nada sorrateiro e nem dissimulado. E a polícia estava lá para isso mesmo, para manter a ordem, para impedir linchamentos. Não é pra isso que ela existe? Mas a polícia não poderia impedir o sentimento de revolta. E não seria normal um tratamento, por parte da mídia, semelhante à cobertura da votação de um projeto sobre reforma tributária. Covenhamos, né?

Vou até onde posso. Não me perguntem por que algumas pessoas se dispoõem a participar de atos de repúdio dessa natureza - e outras não -, escrever cartazes, visitar cemitérios sem nem mesmo ter conhecido a criança. Estranho seria se não tivesse havido nada, se não houvesse pessoas como aquelas que lá foram... todo mundo se comportando devidamente, como manda as regras do chá das cinco. Pelo menos esse caso não será tratado como tantos outros. Vale pelo resultado que poderá produzir.

david disse...

O problema é que essas manifestações não são exclusivas do "teatro democrático" onde "cada um tem um papel determinado a desempenhar". Linchamentos morais e/ou físicos predatam qualquer experiência democrática. A bem da verdade, esses horrores dependem da mesma "base de recrutamento" dos fascismos e outros totalitarismos: dos setores médios descontentes e do lúmpen. "Tenho medo", diria Regina Duarte.

(N.G.: nenhuma manifestação é exclusiva do teatro democrático, David. E, com algum esforço, quase tudo cabe na base de recrutamento dos totalitarismos. Esta média descontente que vos fala entende do assunto - e, ao contrário da Regina Duarte, não tem medo. :-) Bom fim de feriado pra você também)

Stefano disse...

Cara NG, PARABÉNS por mais um texto perfeito!

Alex disse...

Queria ver se você ia continuar apoiando as "manifestações populares", se você fosse vizinha dos Nardoni e aquela multidão descontrolada estivesse em frente à sua casa ou seu prédio, chutando seu porão e enchendo sua fachada de cartazes...

(N.G.: se eu fosse vizinha dos Nardoni, mandaria meus filhos para a casa dos avós.)

Fabio Tagiavini Neto disse...

NG , aqui na periferia de São Paulo são assasinadas diversas crinças - a tiros , afogadas ,na peixeira - e não se fala nada.
Agora aconteceu com bacana parece que o Oriente Médio conquistou a paz , que o nosso ensino público é uma maravilha.
Cada coisa tem que ocupar um certo espaço.

Abraço cordial,

Fabio Tagliavini Neto

(N.G.: também acho, Fabio, que cada coisa deve ocupar o seu lugar. Aqui no blog, por exemplo, quem faz a pauta sou eu. Abraço cordial.)

tigermoth disse...

eu só não concordo com você porque creio que, sendo apenas suspeitos, os pais de Isabella são inocentes até que se prove o contrário. Há a possibilidade de alguém estar sofrendo represália desnecessária nessa brincadeira.

Mas a mídia é para isso mesmo: se quiser "aprontar", tenha em mente que querem o maior escândalo possível, já que é este tipo de coisa que vende jornais.

(N.G.: "inocentes até que se prove o contrário", sim. Mas são acusados pela promotoria como principais suspeitos - acusar, aliás é função da promotoria. Não creio que, em sociedades democráticas, seja condenável que se aceite - e se externe isso - a versão promotoria como a mais válida.